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2000-2014, uma cápsula do tempo do teatro português

Photo by courtesy of João Tuna & Teatro Nacional São João Porto
Photo by courtesy of João Tuna & Teatro Nacional São João Porto

A viragem do ano 1999 para o ano 2000 marcou não só a mítica transição de século e de milénio que para muitas gerações parecia o horizonte imaginável da vida na Terra – acompanhada do respectivo bug, o agora longínquo e bastante vintage Y2K – mas também, no caso português, a inauguração de um novo paradigma na relação entre o Estado e a criação, a produção e a difusão no domínio das artes performativas em geral e do teatro em particular.

Sustentada, então como agora, num regime que justapunha ao sector público, corporizado pelos dois teatros nacionais – o Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e o Teatro Nacional São João, no Porto, único membro português da União dos Teatros da Europa – e objecto de um suporte institucional e financeiro autónomo, um sector não-publico (portanto: “independente”) subsidiado pelo Estado, essa relação alterou-se substancialmente com a entrada em vigor do despacho normativo 23/2000, extinguindo o tratamento de excepção às chamadas “companhias e estruturas convencionadas” (com um mínimo de 15 anos de actividade regular e sistemática) e alargando a todo o universo dos agentes de teatro o modelo do concurso público para acesso aos apoios sustentados (de carácter quadrienal, bienal ou anual) e aos apoios pontuais.

Não obstante as várias alterações legislativas e processuais que foram redefinindo, por vezes declaradamente contra a sensibilidade do meio teatral, as regras dos concursos, esse modelo persiste até hoje, razão pela qual consideramos pertinente ver no período compreendido entre 2000 e 2014 uma cápsula do tempo do teatro português. Tal alteração corresponde, de resto, à tradução política de uma observação empírica: passados 25 anos sobre a revolução do 25 de Abril de 1974, e das aventuras absolutamente singulares, ainda que colectivas, no sentido da criação de um teatro de intervenção ao mesmo tempo popular e comprometido, a paisagem tinha mudado. Mais numerosas, mais jovens, mais expostas à influência do estrangeiro mas também da formação artística especializada de nível superior (em Lisboa, com a Escola Superior de Teatro e Cinema; no Porto, com a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo) ou profissional, as novas companhias a operar no país tinham multiplicado os percursos possíveis dentro do teatro português, forçando o sistema a reconfigurar-se com elas.

O ano em que começa esta viagem é, portanto, um ano zero: o primeiro em que todas as companhias apoiadas pelo Estado, mesmo as que até aí tinham sido apoiadas por convite e financiadas através de um protocolo assinado entre as duas partes, tiveram de candidatar-se ao financiamento disponível através de um concurso (concurso que era já, sublinhe-se, a via de acesso para a maioria das companhias financiadas, ainda que 40% do financiamento disponível fosse atribuído por ajuste directo, através dos referidos protocolos ou de outros projectos especiais). Desde então, a regra do concurso permaneceu estável – mas só mesmo a regra. Tutelas, montantes, procedimentos, critérios de avaliação, métodos de decisão, composição dos júris, enfim, todas as circunstâncias dos concursos tiveram altos e baixos ao longo destes 15 anos de relativa turbulência. Mesmo assim, e apesar dos atrasos crónicos (e por vezes ruinosos) na abertura e na publicação dos resultados – e, claro, na efectiva transferência dos montantes finalmente atribuídos a cada candidato –, o sistema foi funcionando sem interrupções. Em parte, e atendendo a que no período em análise o estatuto da Cultura no Governo sofreu um downgrade (foi um Ministério entre 1995 e 2011, tem sido uma Secretaria de Estado desde então) e que o organismo responsável pela gestão dos apoios já passou por várias mutações (Instituto Português das Artes e do Espectáculo primeiro, entre 1998 e 2003; Instituto das Artes depois, entre 2003 e 2007; Direcção-Geral das Artes de 2007 até hoje), é toda uma proeza.

Até aqui, vimos o copo meio cheio. Mas podemos ver o copo meio vazio, se olharmos para os efeitos da passagem do tempo sobre os montantes do apoio e o número de companhias e estruturas apoiadas: um pouco mais de 9 milhões de euros para 117 entidades em 2000, cerca de 6,3 milhões de euros para 92 entidades em 2014 (já agora, o apoio máximo atribuído a uma entidade também diminuiu: dos 424 mil euros dos convencionados Teatro da Cornucópia e Teatro Aberto em 2000 para os 400 mil euros da Companhia de Teatro de Almada em 2014). Dentro deste intervalo, 2004 destaca-se como o ano em que mais companhias receberam apoio do Estado (131) e 2009 destaca-se como o ano em que o montante disponível foi mais volumoso (quase 12 milhões de euros).

É a partir de 2011, no entanto, que o cenário de retracção do Estado no apoio às artes em geral e ao teatro em particular se agrava mais substancialmente – o ano, claro, em que Portugal formalizou o pedido de ajuda externa para sobreviver à crise e assinou o memorando de entendimento com a troika formada por Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional. Se até aí o montante global disponível para o apoio ao teatro tinha oscilado entre um mínimo de 9,06 milhões de 2000 e um máximo de 11,94 milhões de 2009, a partir dessa data foi quase sempre a descer, e para números nunca antes vistos neste século (e portanto neste milénio): 6,8 milhões em 2012, 6,1 milhões em 2013, 6,3 milhões em 2014. Números provisórios e seguramente incompletos porque ainda há concursos por homologar ou por abrir, nomeadamente para atribuição dos apoios pontuais e dos apoios tripartidos (um novo regime criado em 2007 e posto a funcionar em 2013 que permite candidaturas conjuntas de vários titulares, através de um acordo de associação com as autarquias), há já 53 estruturas apoiadas pelo Estado em 2015, num total parcial de mais de 3,1 milhões de euros. Mas haverá também, mesmo depois de homologados todos os apoios previstos para este ano – o Governo já o assumiu –, uma nova descida do bolo total a atribuir.

É o teatro de uma economia em crise, estúpido – um teatro que as estatísticas disponíveis em parte confirmam e em parte desmentem. Havia mais espectadores de teatro em 2013 do que em 2000, tanto em números absolutos (1,5 milhões contra 614 mil) como em números relativos (148,5 por mil habitantes contra 59, 7 por mil habitantes), mas estamos longe dos picos de 2008 (1,8 milhões de espectadores em termos absolutos; 175,3 espectadores por mil habitantes em termos relativos). E também se fazia menos dinheiro na bilheteira em 2000 (2,5 milhões de euros) do que em 2013 (8,6 milhões de euros) – só que já se fez bastante mais, como em 2005 (11,2 milhões de euros), e de momento não parece possível regressar aos melhores anos.

O decréscimo das receitas de bilheteira é uma evolução a que não escapam sequer os dois teatros nacionais: entre 2010 e 2012, as do Teatro Nacional São João, por exemplo, diminuíram de 286 para 212 mil euros, num cenário em que o orçamento global da instituição também encolheu, de 4,9 para 4,6 milhões (sendo que chegou, no período a que nos referimos, a ser de sete milhões), e em que esta perdeu o seu mecenas. De resto, a vida dos teatros nacionais também tem sido de alguma instabilidade institucional, com alterações significativas de estatuto e, entre outros, um efeito particularmente evidente: a perda de autonomia financeira.

Apesar de tudo, os 15 últimos anos foram também de grande reorganização do circuito de teatros e centros culturais – com a abertura de uma série de salas de última geração, sobretudo de iniciativa municipal, muitas das quais com programação autónoma e capacidade de co-produção com as companhias e as estruturas independentes (uma função vital que de resto os dois teatros nacionais também asseguram com mais ou menos espírito de missão, a par do obrigatório investimento em criações próprias). Um mapa do teatro português nesta década e meia incluirá obrigatoriamente, além do D. Maria II e do São João, centros culturais, alguns privados, como a Fundação Calouste Gulbenkian, o Centro Cultural de Belém, a Culturgest e a ZDB, todos de Lisboa, a Fundação de Serralves, no Porto, e o Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães; e equipamentos “locais” como o Teatro Municipal de Bragança, o Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra), o Teatro Viriato (Viseu), o Teatro Municipal da Guarda, o Teatro Municipal Rivoli e o Teatro Municipal do Campo Alegre (ambos no Porto), o Teatro Maria Matos e o São Luiz Teatro Municipal (ambos em Lisboa). E incluirá também pelo menos estes festivais, com diferentes graus de solidez e de internacionalização: Festival de Almada, Alkantara Festival, FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, Próximo Futuro, Festivais Gil Vicente e Citemor – Festival de Montemor-o-Velho.

É sintomático que este último, o Citemor, tenha passado do lugar onde os espectadores portugueses conheceram encenadores como Rodrigo García – o dramaturgo contemporâneo não-francês mais representado em França, Prémio Europa de Teatro em 2009 – ou Angelica Liddell a festival não apoiado pelo Estado onde os artistas se apresentam praticamente a custo zero, quando não pagam para se apresentar. Mas este é o país surreal que anda há pelo menos 15 anos a sonhar com o futuro mítico em que o Governo gastará um por cento do Orçamento Geral do Estado com a Cultura – e o país real em cujo presente nada mítico esse montante não atinge os 0,1 por cento.

 

Fontes: Direcção-Geral das Artes; PORDATA; Instituto Nacional de Estatística

 

Published on 20 May 2015 (Article originally written in Portuguese)