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Da Sérvia à Síria

Na sua primeira prova de vida como membro da União dos Teatros da Europa, e com a ferida da crise dos refugiados ainda em carne viva, o Volkstheater de Viena confirmou-se como um lugar entre o Ocidente e o Oriente. Aqui, diz a directora artística Anna Badora, não há nem haverá fronteiras.

Scene from POKOJNIK / THE DECEASED. A guest performance of the JDP at the Volkstheater Wien. Photo © Jelena Veljković
Scene from POKOJNIK / THE DECEASED. A guest performance of the JDP at the Volkstheater Wien. Photo © Jelena Veljković

Um espectro, a aparentemente ingerível vaga de refugiados, pairava sobre a Europa no dia em que o Volkstheater de Viena abriu a sua temporada-relâmpago exclusivamente dedicada à vizinha Sérvia, país de origem de uma das maiores comunidades da cidade (entre imigrantes de primeira, segunda, terceira e quarta geração, cerca de 156 mil pessoas, das quais 70 mil mantêm passaporte sérvio) que ali se abrigou historicamente da pobreza e do desemprego, mas também, mais recentemente, da claustrofobia do Titismo e, ainda mais recentemente ainda, das sucessivas tempestades balcânicas. Outro espectro, o do terrorismo como epidemia de proporções sem precedentes, pairava sobre a Europa um dia depois, na insuportável ressaca de mais um atentado em Paris que feriu de morte o modo de vida ocidental, atirando à queima-roupa sobre algumas das suas mais nucleares manifestações (o futebol, o espectáculo, a boa vida).

Entre uma e outra crise, um teatro literalmente situado no centro da Europa, literalmente situado no cruzamento em que o Ocidente e o Oriente se encontram e se defrontam há séculos, fez o que sempre se faz, deixou o espectáculo continuar. No caso do festival Serbischer November (Novembro Sérvio), que entre os dias 13 e 16 mobilizou diversos espaços do Volkstheater, porém, espectáculo pode ser uma palavra inadequada: houve festa sim, e uma noite para comer, beber e dançar, mas também houve o duro embate, ainda que acolchoado pela comédia, com o cadastro nepotista do socialismo (Pokojnic, de Branišlav Nusić, encenação de Igor Vuk Torbica), os milhares de mortos e feridos das guerras de desintegração da Jugoslávia (Aleksandra Zec, de Olivier Frljić, encenação de Olivier Frljić) e o cada vez mais agudo, quando se esperaria cada vez mais obsoleto, choque cultural europeu entre o Norte rico e importador de mão-de-obra barata e o Sul empobrecido e fatalmente emigrante (Katzelmacher, de Rainer Werner Fassbinder, encenação de Bojana Lazić).

Questões traumáticas, estas que ainda pesam às costas de um país com poucos anos de vida em democracia – traumáticas para Sérvia e, a outro nível, traumáticas também para Viena, considerando que foi precisamente um nacionalista sérvio, Gavrilo Princip (1894-1918), a precipitar, com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, a 28 de Junho de 1914, a Primeira Guerra Mundial e, com ela, o inapelável fim do Império Austro-Húngaro. Mas isso era só o século XX a começar; quando acabou, Viena tinha voltado a ser uma das maiores cidades da diáspora sérvia (melhor: uma das maiores cidades sérvias), e inventara entretanto a psicanálise para digerir esse e outros traumas.

Porquê voltar a falar do assunto, cem anos depois da violência com que a Áustria e a Sérvia se atacaram e se defenderam em pleno campo de batalha? Bom, justamente porque passou tempo suficiente para isto não ter de continuar a ser um trauma. E porque, como nos explica muito pragmaticamente a nova directora do Volkstheater, Anna Badora, o Ministério dos Negócios Estrangeiros quis que 2015 fosse o Ano Cultural Áustria-Sérvia: “O Volkstheater tem, em todas as suas temporadas, um foco internacional. Considerando que a comunidade sérvia é extremamente grande, até quando comparada com a comunidade alemã, pareceu-me que aqui podiam combinar-se perfeitamente os interesses do Ministério, da cidade e do teatro.” As plateias cheias – e bilingues – tanto do palco principal do Volkstheater, em pleno coração de Viena, como da sua extensão na Margareten Straβe, confirmam pelo menos o interesse da cidade e da sua expressiva minoria sérvia. Que não é ainda, admite Badora, público regular do

Volkstheater: “A comunidade sérvia, como as outras comunidades de Viena, deve ser trazida para dentro do teatro – como tópico e como audiência. Em Viena, a maioria das pessoas que nos atendem nas lojas não tem o alemão como língua materna. O Volkstheater, que é literalmente ‘o teatro do povo’, tem de sair para a rua e de ir à procura delas.

De resto, e embora o programa tenha assumido muito claramente a sua intenção de conhecer e dar a conhecer a nova geração de sérvios que, depois de Tito, da guerra e de Milošević, tem finalmente a possibilidade de fazer teatro em liberdade, bem como os temas que tem entendido dever tratar, evidenciaram-se neste Serbischer November outras zonas de conflito não exclusivamente sérvias. Primeiro, a grande fronteira Norte-Sul recentemente agudizada pela crise da dívida soberana e, em particular, pelos programas de resgate financeiro impostos a Grécia e Portugal (uma leitura possível, e mesmo irresistível, quase 50 anos depois, desta peça em que Fassbinder encena a tensão social e sexual induzida pela figura do Gastarbeiter na Alemanha do pós-guerra: afinal, terão sido emigrantes desses e de outros países “periféricos” a escrever uma parte da história do milagre económico alemão…). Depois, o insanável desencontro entre os membros da União Europeia a propósito da vaga de refugiados que a guerra na Síria e a difícil sobrevivência em territórios como o Sudão ou a Eritreia exacerbaram ao longo dos últimos meses – um assunto que já era perigosamente fracturante mesmo antes de o Estado Islâmico fazer esta nova entrada em cena que ameaça tornar o entendimento acerca das fronteiras europeias totalmente impossível.

Ainda sem desfecho à vista, e até lá ameaçando partir verdadeiramente a Europa a meio, a crise dos refugiados foi o tópico que o Volkstheater, em parceria com a União dos Teatros da Europa (no contexto do projecto de longo-curso Conflict Zones), quis tratar numa mesa-redonda no Rote Bar – um tópico inevitável numa cidade que há poucos meses viu milhares de migrantes empurrados pelos países vizinhos para dentro de comboios especiais encherem as plataformas das suas estações de comboio. As multidões do Verão desapareceram, mas a Westbahnhof e a Hauptbanhof continuam a ser o limbo entre o acolhimento e o repatriamento para centenas de refugiados que ali encontram cama, comida, assistência médica e outros serviços (de tradução, por exemplo, para muitos um bem de primeira necessidade) prestados por voluntários individuais e por organizações como a Caritas e a Train of Hope. Não é difícil identifica-los: são os rapazes que carregam cartões de telemóvel ou deambulam sem rumo pelos largos e desolados corredores da Hauptbahnhof, os miúdos que dão de comer aos pombos nos arredores da estação e os pais que fumam à porta do lounge executivo da Westbahnhof, agora convertido num jardim infantil improvisado para crianças e bebés sírios, iraquianos, afegãos. Isto enquanto não muito longe dali, em Spielfeld, na fronteira com a Eslovénia, a Áustria parece determinada a construir já nas próximas semanas uma vedação de quase quatro quilómetros para “ajudar a gerir” – ou seja, “abrandar e desencorajar” – o fluxo de milhares de migrantes que todos os dias chegam ao país.

Num país em que a extrema-direita já tinha um peso eleitoral muito significativo (obteve 20,5% dos votos nas legislativas de 2013), a crise dos refugiados deu ainda mais vigor ao Freiheitliche Partei (Partido da Liberdade), que em Setembro duplicou a sua votação no terceiro maior estado do país, a Alta Áustria, e um mês depois obteve um resultado-recorde que o pôs muito perto de ganhar as eleições em Viena, um histórico bastião social-democrata – exactamente como o público do Volkstheater, nota Anna Badora, um público “antiquado e envelhecido” que a nova directora quer muito “alargar e diversificar”, fazendo-o cruzar-se com “uma audiência mais jovem e mais aberta”. Mas não parecia envelhecido nem antiquado o público que sobrelotou o Rote Bar para assistir à mesa-redonda sobre as ligações perigosas entre O movimento de refugiados e o populismo de direita com os cientistas políticos Chantal Mouffe (Universidade de Westminster) e Anton Pelinka (Universidade Centro-Europeia, Budapeste), o antropólogo e director do Museu de Viena Matti Bunzl, a porta-voz da Amnistia Internacional Áustria Daniela Pichler, o presidente da organização não-governamental Asyl in Not Michael Genner, e o dramaturgo sírio-curdo, mas a residir em Viena desde 2002, Ibrahim Amir – uma mesa-redonda que Anna Badora anunciou como um contributo para “discutir questões e encontrar soluções” e que se transformou num vigoroso statement a favor da construção de um discurso alternativo, e portanto de esquerda, acerca da vaga migratória e do que fazer com ela.

Anna Badora, artistic director of the Volkstheater Wien. Photo © www.lupispuma.com
Anna Badora, artistic director of the Volkstheater Wien. Photo © www.lupispuma.com/Volkstheater

Faz parte das missões de um teatro – um dos principais teatros de uma cidade que historicamente tem sido destino de migrantes e refugiados – assumir uma posição política? “Claramente”, responde Anna Badora. “Sobretudo em tempos como estes, é importante trabalhar abertamente contra os preconceitos e contra a propaganda de direita para que o público não se deixe usar por ela.” Citando Chantal Mouffe, uma das oradoras da mesa-redonda, a directora do Volkstheater enfatiza o potencial do teatro para gerar as emoções positivas que a esquerda não tem sabido contrapor ao “discurso do medo” (e do imigrante como “inimigo”) repetido pela direita.

A mesa-redonda deste Serbischer November não esgota, aliás, o trabalho que o Volkstheater está a desenvolver com os refugiados em várias frentes: o programa Ausblick nach oben, criado pelo serviço educativo da instituição, pôs no mesmo palco adolescentes austríacos e adolescentes sírios e afegãos, não necessariamente falantes de alemão, desafiando-os a encontrarem uma língua comum a partir de experiências partilhadas de precariedade socioeconómica; Homohalal, um dos espectáculos da temporada 2015/2016, parte de um texto escrito por Ibrahim Amir com e para membros da plataforma de refugiados que organizou o mediático acampamento de protesto no Parque Sigmund Freud em Novembro de 2012, reclamando então, entre outras condições de acolhimento, o direito a permanecer e a trabalhar na Áustria.

Assim sendo, perguntamos a Anna Badora, é possível que um ano depois deste Novembro Sérvio o Volkstheater esteja em condições de organizar um Novembro Sírio? “Eu gostaria muito, mas estes projectos têm de ser articulados com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que já manifestou vontade de se focar na Bósnia-Herzegovina, um território que integrou o Império Austro-Húngaro e com que a Áustria tem, portanto, uma importante história comum.” A directora do Volkstheater, ela própria uma estrangeira na Áustria (nasceu e cresceu na Polónia), frisa no entanto que a temporada que programou para este seu primeiro ano à frente do teatro vienense é esmagadoramente “internacional”, com as produções dirigidas por encenadores vindos de diversos países do espaço europeu e mediterrânico (Israel, República Checa, Alemanha, Hungria, Grécia, Suíça) em clara maioria sobre a chamada prata da casa. À Síria, diz, há-de se chegar mais cedo ou mais tarde. Talvez mais tarde: “Nesta fase do conflito, seria muito complicado montar com a Síria uma operação como esta que organizámos com a Sérvia e que permitiu a vinda a Viena de espectáculos produzidos localmente. Mas podemos encontrar outras formas de trabalhar.

 

Published on 26 November 2015 (Article originally written in Portuguese)